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M. parece esquecer-se das grandes lições que me ensinou, pelo menos deixou de as aplicar a si própria. E que falta lhe têm feito aquelas receitas recheadas de optimismo e bom humor.
M. fez de mim a mulher que sou, para o melhor e o pior. Bem sei que o pior não foi deliberado, conta a boa intenção, mas o excesso de protecção fez de mim uma 'atada', frágil e muito susceptível a melindres. M. já me disse várias vezes que eu deveria ultrapassar as mariquices, tornar-me adulta, mas esquece-se que sou assim porque ela esteve sempre a meu lado com a asa de galináceo a proteger-me. Ao menos apenas me amparasse a queda, do mal ao menos, mas M. nunca me deixou sequer voar quanto mais cair. Apertava-me num espartilho de cuidado e ternura, gostoso mas sufocante.
Eu sou a razão de viver de M., bem sei, e por isso nunca a acusei de me ter travado quando na verdade precisaria de um valente empurrão para voar e me fazer à vida. M. esquece tudo, o bom e o mau, não gosta de viver de recordações, muito menos do passado. Se olha para mim sinto-lhe uma mágoa, gostava que eu fosse mais atrevida, espevitada, porque não dizê-lo, um pouquinho maliciosa e até sacana. M. foi isso tudo e muito mais, e para ser uma super mulher, nem a ausência de capa lhe manchou a reputação, enfim, foi apenas um detalhe.
De super não herdei nada. Sou super-medrosa ou mesmo super-preguiçosa, e não consigo esquecer o passado. E esse passado é tão presente que me rouba horas de sono. Não sou a mulher que a minha mãe gostaria, e ela foi a mãe que nunca mereci.
A todo o custo dou o meu melhor, sei que sou uma boa filha, com a mesma certeza que sou um bom ser humano, mas não fui preparada para me desenrascar numa sociedade doente. Embora sã, com o juízo intacto, de nada me vale quando todo o mundo se vai safando com insensatez, despropósito e loucura.
São 8.15 da manhã, ligo a M., ela já fez a caminhada matinal, conta-me que está chateada, tem um 'terçô', eu digo terçolho, ela insiste no termo 'terçô' e dói-lhe muito.
- Está bem mãe, pega na aliança esfrega-a numa camisola e coloca-a quente sobre o terçolho.
- Ah! - grunhe espantada.
- Então não te lembras do que me ensinaste?
- Eu não. Essa coisa da aliança fui eu que te ensinei?
- Sim mãe. Tal como me ensinaste que devo acompanhar a omelete com pão para encher o bandulho e poupar nos ovos.
- Ó filha, isso já faz tanto tempo. Bem sabes que o pão engorda, come só a omelete. Quanto ao 'terçô', vou dar um saltinho à farmácia.
Neste natal não vou oferecer presentes e não quero recebê-los.
O mundo e nomeadamente Portugal está a precisar de tudo e mais alguma coisa, nada que se encontre nas lojas. E felizmente , se a bondade e solidariedade se adquirissem num estabelecimento comercial, deixaríamos de confiar na genuidade desses e outros sentimentos.
Parece-me de mau tom que se sacrifique o orçamento familiar para comprar 'tarecos' que em nada contribuem para o real bem estar dos nossos e dos 'outros' . Espantem-se, os 'outros' afinal são ' os nossos', tendemos a esquecer-nos que fazemos todos parte desta unidade a que chamam de humanidade.
Um bom princípio, deixar de distinguir os seres humanos por 'uns' e 'outros'. Em vez de limitarmos a ' boa vontade' ao mês de Dezembro , prolongá-la pelo ano inteiro com gestos, simples actos que fazem a diferença no modo como encaramos a vida e como uma planta, à luz e ao luar, regá-la de esperança.
É aquele sentimento que vejo nos olhos do meu pai, desesperança, é terrível uma espécie de vírus que ninguém percebe como apanhou.
Um dia acreditava que a vida era uma coisa extraordinária, mesmo nas suas insignificâncias, para depois sem prever, acordar e antes de ter tempo para me levantar da cama, sentir a desesperança atirar-se a mim com 'ganas', são tantas as 'ganas' desta desesperança, estrangula-me e quase me leva. Em vez disso, fico derreada. Respiro fundo, ergo-me, lenta, desamparada como quem acabou de apanhar uma carga de porrada numa esquina de rua. Ninguém viu, mas sinto as carnes doridas, juro ter nódoas negras, porque a desesperança dói, fisicamente penosa, abalroa sem critério.
Atropelada e ali fico jogada nessa febre que se espalha viral, sem controlo.
Sintomas; a falta de fé. Nos outros. Em nós.
Deixamos de acreditar e pronto, caímos no jugo dessa maldita desesperança. Não há solução medicamentosa que nos liberte mas há o gesto, por nós, pelo próximo e é nesse gesto que reside a cura para a doença, que avança calamitosamente deixando pelo caminho tanto desespero.
No mesmo dia que julgo ver um homem pendurado no gradeamento da Ponte 25 de Abril, provavelmente mais uma vítima da desesperança, oiço a estório do 'Robin das Artes'. Todos falam dele, especialmente no bairro que frequento, entre Laranjeiro e Miratejo, onde recolho pedaços que felicidade, um antibiótico para a minha própria febre.
Gostava de abraçar o 'Robin das Artes' porque me fez sorrir, ver o bairro decorado com arte é de artista e devemos-lhe todos um agradecimento por lembrar Portugal que a desesperança se pode ir vencendo, sorrateira e com malandrice. Surgem olhos a brilhar, os que há muito haviam esquecido de apreciar com a mesma paixão o sol e a chuva.
Que bom, os heróis não vivem só nas grandes cidades.
O que pode acontecer quando se junta um grupo de artistas num espaço onde tudo é permitido?
Não deixo a resposta aos desígnios do divino porque desconfio que nem ele saberá. Não se inquietem, ninguém sabe o que realmente acontece no EKA Palace, porque a arte não tem uma fórmula, não é uma equação matemática ou um circulo perfeito. Abrem-se por isso todas as possibilidade e escancaram-se as portas para curiosos, e porque não dizê-lo, destemidos.
O EKA Palace é tudo o que possas imaginar e simultaneamente nada do que realmente imaginaste. Reina a pluralidade de expressão: numa galeria, palco, bar ou quem sabe, pendurados nas nuvens.
Preparem-se para noites inspiradas regadas com boa vibração. Num espaço em que tudo pode acontecer, reúnem-se artistas, escondidos algures debaixo do tapete, mas cujo estoiro é certo quando se revelarem no Eka Palace, um dos espaços mais ‘underground’ e promissores de Lisboa.
Volto à primeira questão, o que pode acontecer quando se junta um grupo de artistas num espaço onde tudo é permitido?
Não faço ideia e enquanto assim for, tenho apenas uma convicção, nada é insuperável e o que acontece no Eka Palace, fica no Eka Palace, mas de certeza vai causar eco fora de portas.
'...os antropologistas da velha escola argumentariam que os grupos tribais tecnologicamente elementares estão mais próximos do fulcro da questão do que os memebros das civilizações mais avançadas. Eu não concordo. Os grupos tribais simples que ainda hoje existem não são primitivos, mas estupidificados. Há milhares de anos que não existem verdadeiras tribos primitivas. O macaco pelado é essencialmente uma espécie exploradora, e toda a sociedade que não foi capaz de avançar constitui um falanço, 'seguiu um caminho errado'.
...teimamos em continuar a baixar a cabeça perante a nossa condição animal e a admitir tacitamente a existência da besta complexa que se agita dentro de cada um de nós. Se formos honestos, teremos de reconhecer que ainda serão precisos vários milhões de anos, para transformar essa besta, através do mesmo processo genético de selecção natural que a conservou dentro de nós. Entretanto, as nossas civilizações incrivelmente complicadas somente conseguirão prosperar se nós as concebermos de forma que não combatam, nem tentem suprimir, as nossas profundas exigências animais. Infelizmente, o nosso cérebro pensante nem sempre está de acordo com o nosso cérebro emocional. Numerosos exemplos ilustram de que modo as coisas se desorientam, em certas sociedades humanas que ruíram ou se tornaram estupidificadas.'
'O macaco nu' Desmond Morris