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(Fernanda Montenegro em 1964)
Lembro-me tantas vezes de Gisleine, a rapariga do Pantanal. Não era bonita, encantadora, charmosa ou exótica. Não era esperta, inteligente ou espirituosa. Gisleine parecia saída debaixo de um pedregulho, creio no entanto, quando viu a luz sentiu instantaneamente a felicidade entrar-lhe nas veias, bombear-lhe o coração. E ria, ria tanto, como se a felicidade lhe fizesse côcegas debaixo dos braços. Riso sincero o de Gisleine, de quem não sabe nada da vida, nem se quer dar ao trabalho de entender o propósito de tudo 'isto'.
A rapariga do Pantanal não conseguia adaptar-se a Portugal, embora falassemos todos a mesma língua, raras vezes conseguíamos manter com ela uma conversação satisfatória. Mas toda a gente sabia, não haver uma só pinga de maldade em Gisleine e só por isso estará sempre na minha memória. As pessoas realmente boas fazem-me acreditar que 'isto' ainda vai valendo a pena. Em dias de total desesperança trago Gisleine aos meus pensamentos e também eu sou um pouco mais feliz.
Contava-me da gravidez numa viagem que fizemos juntas, e quase percebi por entre dentes a incredulidade do que estava a passar-se com o seu próprio corpo. Mais pesada, inchada, disforme, juro ter ouvido Gisleine entoar 'como isto me foi acontecer?' - mas o seu deus, o tal que nunca a abandona, encarregava-se de lhe dar as coordenadas. E se para mim, esta é a história de uma mulher perdida num novelo intrincado cheio de nós e laçadas. Gisleine sorri-me, como sorria sempre, a toda a gente. E se havia lágrimas a querer esvair-se dos seus olhos, sorria mesmo assim eenquanto dizia 'deus gosta muito de mim'. Inquiri-a com o meu olhar, espantada 'como seria se deus não gostasse assim tanto de ti?!', a resposta chega-me hoje. Gisleine é feliz, uma condição a que não pode fugir, seja pela genética, pelos ares do Pantanal ou porque não tem inteligencia para ser infeliz.
(Judy Garland em 1938 com o pequeno gato preto)
Os dois deitados, o nosso ninho quente e escuro, impenetrável ou talvez não. Mas já lá vamos.
Benjamin, o sedutor gato, estende-se mesmo a meu lado, patas erguidas lembra um frango no espeto, exibindo a barriguita branca e macia como veludo, rebola entre os lençois como uma diva caprichosa.
Logo pelas 7 da matina, H. já nos desempatou a cama. Em vez de ficarmos em plena luxúria do sono dos justos, dormito com uma 'pulga atrás da orelha' ou será uma lagarticha atrás da cómoda?. Intranquila, voltas e mais voltas, Benjamin observava-me pelo canto de um olho, porque o outro ferra o galho.
- Benjamin, viste por ai a Ticha? - Pergunto ao felino, absolutamente indiferente ao meu estrafego.
Não há qualquer dúvida, o gato borrifou-se para mim e deixando-me o coração nas mãos e o pânico à distância de um berro, murmura um inequívoco 'mmmmm'. Praguejei, que raio de gato fui arranjar, um bicho que há muito terá perdido o instinto selvagem, deixa-me entregue aos devaneios de uma lagarticha atrevida.
H. não me quis dizer nada, sabe quanto odeio répteis, conta-me que a viu à tardinha no escritório e ao investir nela, avançava energicamente para a sala e como rasto deixou-lhe apenas a cauda na mão.
Benjamin quer lá saber, repenica-se em cima do meu peito, imóvel, consigo mexer os olhinhos, que espreitam para todos os cantinhos.
- Ticha, estás ai? - pergunto na escuridão do nosso ninho enquanto o felino me lança uma patada com as unhas recolhidas mesmo nos lábios, como quem diz 'vá, cala-te e dorme'.
(Muhammad Ali a jogar Monopólio com os filhos)
Até há pouco tempo, lastimava o facto de três volta e meia regressar à estaca zero. A sensação de ter estado naquela posição, perder o chão, lutar em areias movediças pela tão almejada zona de conforto, trazia-me angústias. Trinta e oito anos e mais um recomeço.
Como teria sido com os meus pais? Não os recordo numa corda bamba sempre prontos a recomeçar. Aliás, o percurso que em conjunto construiram, pautou-se pela coerencia, desenhando nos seus destinos traçados a lápis de carvão, uma curva de sentido ascendente. E se incidentes houve pelo caminho, tropeções, algumas quedas menores e pequenas escoriações, não há registo de recomeçarem vezes infinitas da casa de partida. Como se a vida fosse um jogo, o monopólio, perdedora por natureza, gosto do prazer de jogar, mesmo que às vezes me calhem cartas inglórias como 'você vai para a prisão' e ali fico a perder jogada atrás de jogada, enquanto os outros compram propriedades. No monopólio, eu prefiro adquirir as estações, por azar valem pouco no contexto do jogo. Há um estranho prazer de inveterada derrotisma que me leva a adquirir o (aparentemente) dispensável. Não é de estranhar que no próprio jogo, eu entre em banca rota como na própria vida, forçada a um novo recomeço.
Já o jogo que os meus mais perpetuam, tem sido qualquer coisa como 'o sabichão', com lampejos de esperteza saloia, é um facto. Mas no longo percurso de mais de 40 anos juntos, têm encontrado respostas a todas as perguntas, como por magia ou como por sabedeoria das idiocracias da própria vida.
Em conversa informal com I., descemos as escadas, paramos a meio, entre um degrau e outro, I. de 47 anos fala-me dos seus recomeços. E sinto-me menos sozinha e até perdedora. Confessa-me com algum sentido de humor e otimismo 'estou a recomeçar', como o fará sempre, e nega a natureza de conformada 'sou uma lutadora, nunca uma desistente'.
Com menos complexo, lanço outra vez os dados e aqui vai alho. Qual será a carta que me irá calhar desta vez?
(Shirley Maclaine e o irmão Warren Beatty)
Assuntos de irmãos, como filha única não os entendo, mas aprecio-os. Observo, tacteio e até lhes sinto o cheiro. Se há quem acredite nos laços de sangue, creio apenas em cumplicidades e essas podem ser mais ou menos óbvias, aos que como eu se limitam à arte da contemplação. Há-as refrescantes como uma brisa fresca num tórrido dia de Verão, são relações simples, até primitivas, cheias de dinâmicas próprias, impróprias ao entendimento de quem vasculha ao longe. H. viu C. nascer, não foi amor à primeira vista, mas a parelha entre estes dois irmãos foi-se construindo entre lutas de almofadas e brigas espalhafatosas. C. hoje é mãe, H. é tio, e sabem estar à distância de um telefonema. C. deu à luz a mais bela criança do mundo, é uma menina. Vejo os olhos brilhantes de H. quando se foca na pequena rebelde de um ano. Encontram-se porque sim ou vão à praia porque sim, também. C. é super mãe, entre fraldas e bolachinhas Maria, carrega uma tralha interminável para a praia. Ah, falta-lhe o chapéu, volta atrás, pega na pequenita e recebe uma mensagem de H. 'Precisas de ajuda?'. C. responde ao seu jeito, mulher guerreira 'não, deixa estar'. H. sai disparado porque lhe conhece as maneiras, é claro que precisa de ajuda.
Eu acompanho os acontecimentos, numa mão a máquina fotográfica, na outra um livro do Rui Zink, espreito a pequena e acho-a quase tão fascinante como os meus gatos. Há tanta coisa a acontecer naquela pequenita cabeça de cabelos dourados. Sinto o silêncio entre H. e C., não é constrangedor, pelo contrário, é plácido, como a tal brisa fresca num tórrido dia de Verão.