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A. convencia-me das maravilhas da maternidade, em dias de negativismo empedernido revelo as possibilidades mais catastróficas. A. ri à gargalhada e eu convenço-me que é mesmo assim, filhos não. A pequena L. abeira-se de nós, pés descalços, cabelo ondulado, rebelde.
- Mãe, quero fazer um vídeo para o You Tube.
- Está bem L. - responde A. prontamente.
Eu meto o bedelho.
- Um video para o you tube?
- Sim. - Responde assertiva, L.
- Mas para quê?
L. encolhe os ombros e pede o telemóvel à mãe.
Já sozinhas, manifesto o meu choque, mas A. desarma-me.
- Sim, deixo-a fazer todos os vídeos que ela quiser, mas não vão parar a lado nenhum.
L. tem 9 anos, está quase a fazer 10 e já nasceu com uma espécie de chip que robotiza os nossos miúdos num 'star system' em que todos devem ser vedetas. A pequena L. ainda se vai deixando enganar, mas daqui a dois meses estará noutra escola, com miúdos mais velhos e na posse de alta tecnologia. L. vai querer mostrar os seus vídeos caseiros, mas onde se encontram? No fundo, encontram-se no mesmo sítio de todos os vídeos caseiros que a minha geração e outras anteriores, filmou. Um poço sem fundo de memórias e melancolia, em casa para jubilo dos nossos pais, lacrimenjantes nos recordam eternamente crianças.
A. não está preparada para as exigencias que a esperam, assume com receio o crescimento da sua menina. Quer mantê-la longe deste bulício e assegura-me que L. é uma criança com noção de responsabilidade e mesmo sem pôr as cartas na mesa, percebo, é L. quem manda naquela relação. Aliás, é assim naquela casa como em quase todos lares. Os pais querem o mundo para os seus pequenos, mas aos poucos os pequenos tornam-se grandes, independentes e caprichosos. O mundo já não chega, é preciso mais. E mesmo com todas as apps que são desenvolvidas para facilitar a tarefa dos pais, nunca tal desafio me pareceu tão difícil, para não dizer, inglório.
Podia ser um mote para uma cançoneta de Amália ao estilo 'Ó Senhor Extraterrestre', mas por esta altura nem o Carlos Paião andava por Lisboa, e nem a sua imaginação seria assim tão prodigiosa. Havia mesmo um chinês, junto ao seu estabelecimento comercial, que entre o colorido dos Santos Populares se misturava com as barraquinhas das bifanas. Tudo a preceito: assadouro, as brasas no ponto, a sadinha na grelha, e de leque em riste o chinês, pequenito mas desenrascado, conferia àquela tradição tão portuguesa um toque de multiculturalidade a que Lisboa não pode nem quer fugir.
Se fugir é o meu nome do meio, foi nesse ano em que 'tava um chinês a assar sardinhas, decidi deixar de frequentar os bairros populares da capital em dia de ramboia. A sangria meio augada compensa o facto de encontrar das melhores bifanas, marinadas com um molho gorduroso com muitas horas de apuro, que mais depressa a ASAE apreendia o suco das bifanas do que o senhor chinês desvirtuando a base da sua própria cozinha, assava sardinhas com asseio e arte.
Nos santos há bailaricos, os bairros estão enfeitados, um verso em cada esquina aromatizado com o viçoso mangerico. E tudo isto é o nosso Fado, a alma portuguesa, assimilada por todos quantos nos visitam. É bela a poesia que surge destes momentos inspiracionais mas na realidade eu não consigo ser feliz se não respirar e na noite dos santos, Lisboa é impraticável. Gosto de palmilhar os pateos, lugarejos, becos sem saída, a arte urbana que toma conta dos nossos muros, os castiços e os pregões. Sobra-me o resto do ano para disfrutar da cidade eternamente catraia.
Na noite dos santos, lembrei do meu ninho o dia em que pela última vez celebrei em comunhão a festa e vi que 'tava um chinês a assar sardinhas; sórdido e belo, simultaneamente. E todos os anos, do meu ninho, no conforto do pão com manteiga, um desconhecido toma conta da minha memória e ele nem faz ideia que dos santos populares de Lisboa o guardo como uma relíquia. Nunca irei esquecer, o instante exacto em que no Campo das Cebolas 'tava um chinês a assar sardinhas e eu rumando a sul, desconfiava, que tão depressa não voltaria a fazer parte daquela festa. Até um dia...
Com a evolução da espécie escasseiam os nossos propósitos nesta vida. É um 'non sense' mas talvez explique as prateleiras das livrarias com secções dedicadas a auto-ajuda. A ideia dos livros de colorir até me agrada, mas há uma estratégia de marketing muito bem urdida a fim de nos fazer crer que encontrámos o que nos irá realmente preencher. Surge agora o conceito Mindfulness e abarca palestras, livros e outras técnicas numa versão mais polida dos productos vendidos na TVShop e outros canais que tais. Vou mais longe, assumo a minha paixão por canais de vendas, somente porque me deixam dormente, algo 'zombificada' e o implacável João Pestana não resiste a uma boa cinta delineadora de silhuetas, para imediatamente me embalar no sono dos justos.
Mindfulness, não me adormece, bem pelo contrário, irrita-me. Dizem os teóricos, devemos aprender a sentir o corpo. Com mil raios, sofro de flatulência crónica entre outros desarranjos embaraçosos, detesto ouvir o meu corpo. Se ao menos o meu corpo fosse delicado como uma madame, nada disso, fala alto e mais parece que solta o pregão na praça da Ribeira. Diz um dos entendidos em Mindfulness, um copo de água não é apenas um copo de água, vamos apreciá-lo. Ali fica, queimando tempo televisivo, um espécime que nem sequer serve para lavar as vistas, falando serenamente como se há muito lhe tivessem cortado os testículos e cujo grande propósito mesmo 'descolhoado' fosse apreciar a textura daquele copo, o frescor daquela pinga de água.
Nem por acaso, juntam-se duas mulheres com dois grandes pares de tomates, não os pediram emprestados, são delas por direito, assim nasceram com uma vontade indestrutível. A. arma-se em electricista e já só metade da casa está às escuras, eu tenho a mania que sou a 'endireita' do bairro, e antes de pôr as mãos em A., e não vá a nossa diabinha (também naturalmente com a sua bela tomatada) tecê-las, calco bem no fundo do gorgomilo da minha paciente um voltaren rapid. Bolas, nem sequer há tempo para apreciar a água, o copo parte-se em mil cacos pela cozinha meio despida. Também meio despida já se encontra A., rabo ao leu, dou-lhe cabo daquela lombar, ela geme, mas não há um pingo de erotismo. Pelos meus dedos sinto-lhe pequenos nódulos inflamados mas os meus pensamentos continuam no copo partido. E se resolvesse colar caquinho a caquinho, trabalho de relojoeiro, minúcia e habilidade até que o copo voltasse a ser inteiro?! Se o fizesse, tenho a certeza, a minha mente estaria cansada e pela noite já nem havia tempo para as televendas, iria quedar-me como uma donzela Shakespereana. Mas para tudo isso acontecer, os meus testículos, os tais herdados pela genética de uma família matriarca, teriam de ficar em repouso na mesinha de cabeceira tal e qual uma velha dentadura.
Foi com um certo pesar, passando as mãos quentes e macias pelas minhas costa, M. expressou 'filha, estás a embrutecer.' E não pude contradizê-la, é a mais pura das verdades, e quase me orgulho deste estado intectualmente vegetativo. Deixei de ser aquela miúda sedenta de cultura para se fixar em agulhas e linhas, pinceis e lápis, flashes e zoooms. Para terminar em grande o definhar de uma cabeça que sempre se disse estar cheia de ideias, borbulhando criatividade, comecei a ver uma novela 'Poderosas' da Sic e isso retira-me alguns períodos de qualidade conferidos pelo meu querido Canal Q. Em minha defesa, há a dizer, antes de dormir vejo 'Observatório do Mundo' da TVI24 ou 'Toda a Verdade' da SicNotícias, serve apenas para me trazer insónias e com elas um desejo terrível de assaltar o frigorífico. Sim, estou bruta que nem um calhau, assumo, e até com o tal orgulho besta, mas enquanto me foco num pastel de nata, num bom angulo para fotografar, num fio de linha para tricotar, ponho de parte uma série de amarguras que se vão amontoando, umas às outras como um castelo de areia composto por camadas. Aguardo uma maré cheia para que destrua as angústias e para que esse castelo composto por pequenas areias se perca na espuma. Será que vou recuperar o prazer de outros tempos; escrever é um deles, e se já notaram, deixei de ser assídua neste canto. M. insiste, escreve, escreve. Encolho os ombros, toda a gente escreve e eu tenho pouco a acrescentar. M. é perentória, escreve para ti. E assim farei, pelo menos enquanto a maré contrinuar baixa.
A ironia estampada na frase' as crianças são o melhor do mundo' escrita por quem nunca teve filhos e segundo se desconfia nunca sentiu o apelo da paternidade, o tal de Pessoa. Para mim, e não sou poeta nem lírica, o melhor do mundo são muitas outras coisas e as crianças coexistem em harmonia num número ilimitado de prazeres que diariamente acolho de braços abertos.
Se alturas houve que disse despudorada 'eu não gosto de crianças' hoje gosto de as desafiar a saltar por breves instantes ao mundo dos adultos enquanto me permito ser ainda mais infantil do que é costume. Chamem-lhe um mini estágio do que aguarda os meninos de hoje, Homens de amanhã. Sem nunca deixar de lhes sorrir, pisco o olho em momentos de espontânea cumplicidade ou desarmo-os com um sorriso matreiro de raposa velha. Mas há algo inegável, eu não percebo absolutamente nada de crianças, nem como a psique delas funciona, e por estranho que pareça já fui uma, e diz-se até que fui das que se munia de uma certa esperteza saloia ou tentativas de dissimulada manipulação. A resposta surgiria antes que pudesse avançar afoita com o meu plano, um sussurro ao ouvido 'em casa falamos' e sabia instintivamente, iria pagar com juros, tudo o que havia aprontado.
Fez portanto sentido uma frase que terei ouvido há muito tempo atrás 'deves andar a comer elásticos ao pequeno almoço'. O miúdo na altura, silenciou-se e comeu o seu happy meal amuado, como não percebo nada de crianças, pareceu-me que mãe haveria sido demasiado inflexível. Até conhecer L., a que nunca ouve a palavra 'não' e se ela é proferida pelos adultos, faz ouvidos de mercador. Joga a seu favor uma extraordinária beleza, por isso é certo que conseguirá dar volta a um 'não' pouco sustentado num jubiloso 'sim' em mais uma vitória sobre os adultos.
Moldar carácteres, formar bons seres humanos é trabalho que não tem preço e muito menos reconhecimento. É preciso a coragem de enfrentar tantas solicitações, desafios, perigos e mesmo assim manter a firmeza. Neste dia da criança, os meus votos vão para as mãe coragem, as que dão o seu melhor e pensam que o seu melhor não é bastante. 'Onde é que eu falhei? - oiço algumas perguntar, mas a resposta irá apenas ouvir-se daqui a muitos anos. Agora, a criança sabe do seu poder de persuasão, e fará de tudo por um 'chupa chupa', mas quando as próprias passarem pela provação da maternidade, a primeira coisa a fazer é declarar sem demora, às que lhes aturaram todas as birras 'foste e serás sempre a melhor mãe do mundo...mesmo quando me dizias 'não'.