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De há um ano a esta parte, tenho vindo a ganhar peso, e decidi não me ralar com isso. Assumo enquanto lá vai mais um bolo ou um salgadinho, num ou outro acto alimentar conscientemente suicída. Há ainda quem tente justificar o meu aumento de peso com questões hormonais, são provavelmente as desculpas que ouvem de outras tantas suicidas (inconscientes). Já se atribuiu o meu actual volume corporal a gravidez, podia perfeitamente embalar nessa mentira conveniente e gerar uma onda de condescendência em meu redor. Em vez disso respondo, seca, 'eu não estou grávida, estou gorda'. E poucos parecem preparados para tanta frontalidade, porque logo se preparam para um role de desculpas que eu própria dispenso 'estou gorda porque faço assaltos suicídas ao frigorífico'. As pessoas sorriem, julgam-me espirituosa, e eu vou eu ao café comer uma bola de berlim. Lambo os beiços e quando uma névoa de culpa me sobrevoa a mente, afasto-a à pedrada. Numa fase de tanto aperto, sinto umas algemas invisíveis prender-me os movimentos, toldar-me até a mente e a criatividade, ao menos comer ainda é um acto de liberdade e se eu como.
A roupa de magra deixou de me servir, mas não me atrapalho. Descubro lojas com roupas de tamanhos grandes, compro o L e depois o XL até já visto o XXL se preciso for, mas não deixo de sair à rua de cabeça levantada, bem ataviada e a soltar um aroma perfumado que emana a minha pele.
Estou meio disforme, sem pescoço, a minha cara está redonda como uma bolacha, e comer tem sido das melhores coisas a recolher dos últimos tempos. E como com brio, prazer e até algum orgulho besta, ao estilo ' estou-me borrifando para o peso.'
O problema surge quando o corpo lança sinais de que nos andamos a tratar mal, porque já não basta toda a gente neste país nos tratar a pontapé, se sou a primeira a descuidar-me atentando contra o meu bem estar, há algo que pode correr muito mal. Então, mas que se lixe os diabetes e a pressão alta, desde que não faça exames, enterro a cabeça na areia como a avestruz e continuo a enfardar bolos como se da crise económica houvesse o risco de encerramento de todas as pastelarias do país. 'Que se dane' sigo a minha animalidade lamebendo os beiços aparando com a língua pedacinhos de açucar em pó, provas de um crime acabado de cometer.
Mesmo sem exames ao sangue, o corpo dá sinais, mais ou menos explícitos. Doi-me a coluna, as articulações, acordo cansada. 'Quero lá saber', insisto, não por muito tempo. Uma noite na cama, sinto um ácido angustiante subir o esófago e banhar-me a garganta. Fico nauseada, não dou demasiada importancia, quem nunca teve refluxo?! Mas acontece outra vez, e outra e instala-se o medo de mais uma crise. Tomo gaviscon, e mais não sei o quê, procuro na internet as possíveis causas, obesidade é das primeiras. O corpo lança agora o derradeiro aviso e desta vez eu tenho mesmo de lhe dar ouvidos.
É estranho uma bicicleta chamar-se burra, mas é assim a tradição em Cacilhas. Numa determinada data faz-se corrida de burros no centro da vila, um pouco à semelhança com os touros noutros pontos do país.
Logo à saída dos barcos de Cacilhas há um quiosque 'Dá Cá Cilhas' e que nos convida a andar de bicicleta, com a vantagem das meninas lembrarem soalheiras tardes de passeata montadas nas suas pasteleiras.
A proposta era arriscada. Pedalar até ao Parque da Paz, e nem os exercícios de pilates que me têm ajudado em termos de equilibrio e coordenação me pareciam de grande utilidade, pelo menos aos primeiros minutos.
Que liberdade, sentir o vento nos cabelos num misto de afrontamento e medo, segui quase sempre em recta num trilho delimitado aos ciclistas, e até parecia uma daquelas tipas cheias de pinta em Barcelona, não perdendo uma gota de suor e estilo, no que a pedalar diz respeito, para elas já se tornou num estilo de vida. Verdade seja dita, transpirei que nem um bacorinho, as minhas rosáceas alcaçavam-se a quilómetros de distância, mas o caminho recto desafiava-me a cada pedaço de estrada.
No total, talvez 12 quilómetros, uma tarde em cheio e uma enorme vontade de repetir.
Medo da vida, da morte, dos mortos, dos vivos e dos mortos vivos.
E se chegar o momento em que o medo deixa de me afectar e vivo cada dia como o último. Dou beijos aos meus amores com a intensidade de quem sabe 'o amanhã não me pertence', mas hoje tenho-vos aqui entre os meus braços, sorrio e acolho os vossos sorrisos como um bálsamo para o coração.
Acordo, pela manhã, e estranho. É estranho. Mais um dia para viver, há que aproveitá-lo, porque amanhã não sei se haverá outro acordar porque 'o amanhã não me pertence' e caminho por sitios desconhecidos, arrisco outras vistas, outras vidas, não quero morrer estúpida.
Dizem-me, é perigoso, palmilho bairros decadentes, pessoas desesperançadas, elas olham-me e seguem o meu percurso enquanto puxam de mais um cigarro. Os pretos, ciganos, muçulmanos misturam-se numa mixórdia cultural onde me espraio num sentido puramente contemplativo. Cuidado, avisam-me, nem uma névoa de medo me assalta, sorrio para quem me olha, e mesmo que se sintam eles próprios perdidos, em casa, por o sorriso sincero de uma estrangeira, é nos seus olhos que ecoa o medo. Afinal, porque lhes sorri uma estranha? Há que ter medo de um sorriso, partilham entre eles num tom conspirativo, e eu sigo o meu caminho. Eles ficam para trás, esperam o amanhã, numa cópia replicada a papel químico.
Percorro ruas e mais ruas, mala a tira-colo e às vezes uma máquina fotográfica, desconfio, se eles soubessem o que eu sei, fugiam a sete pés daquele conforto perturbante. Ninguém duvide, o amanhã não nos pertence.
'A última mulher que pisou a linha, foi colhida por um comboio.'
Apanhei-a, à frase, não à mulher suicída, algures de relance numa publicação do facebook. Gostava de ter lançado a mão a essa mulher, mas também julgo que é seu o direito de partir. Aliás, a última mulher que pisou a linha para ser estraçalhada pelo comboio, foi cuidadosa no seu esquema. A mãe de Noo estava farta de viver, o filho completava 18 anos, uma vida a dependender de comprimidos para o que se dizia ser um problema 'dos nervos', dores que da alma se fixavam em cada uma das suas vértebras, como se na coluna carregasse as lágrimas do mundo inteiro. A mãe de Noo não ameaçou ou estrilhou, nunca se entupiu em comprimidos dinamitados com alcool puro. Queria morrer e pronto. Ninguém tinha nada a ver com isso, e por muito que soubesse que na boca dos conhecidos passaria por uma tresloucada e egoísta, entregou-se à morte, deitando-se numa minha curva e estreita. Ninguém a podia salvar e nem o maquinista conseguiu parar a tempo.
...mas às vezes lembra-me 'A Casa de Irene', uma série hilariante da TV Bandeirantes e que terá passado na RTP em finais de 80s. Uma família brasileira com uma forte raíz italiana cuja matriarca é quem veste as calças numa casa que está sempre de pantanas.
Havia acordado há poucos minutos, dei de caras com um tacho e restos de polpa de tomate do que terá sido o molho de umas almodegas 'low cost'. Naquele instante lembrei a conversa com H., pedia-lhe desculpa por não ser uma boa 'dona de casa' e se dúvidas houvesse de que H. é o homem por quem sempre esperei, a resposta 'tu não és dona de casa, és dona da tua vida' terá cimentado uma certeza muito minha.
A minha própria mãe, bem menos negligente que eu, também não será o melhor dos exemplos de uma dona de casa exemplar. E fui ao baú das memórias e só Irene correspondia na perfeição ao meu ideal de mulher que cuida dos seus antes de si própria. Irene era bruta e sovina, mesmo que a abundancia não fosse o forte, não havia quem passasse fome. Porque Irene era uma espécie de Filipa 'já foi ter com Deus' dos lares brasileiros. O reaproveitamento ou 'restos' haviam de servir para várias refeições durante alguns dias.
Inspirada pela grande Irene, em poucos minutos improvisei com as sobras da polpa de tomate um belíssimo arroz de....tomate e uns camarões que já andavam de rojo no congelador, pelo menos desde 2014. E de um magnífico molho de cerveja que teria sido de um frango já devorado, servia agora de base para o esparguete. Ainda petisquei directamente da panela, para não ter de lavar pratos. Choca-me menos 'penicar' comida do que um tacho em cima da mesa, francamente.