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Partilhamos quinze felizes anos, numa pequena casa na margem sul do Tejo, e sabemos que o corte é inevitável. Leonardo, líder incontestado, entre os da sua espécie e os demais. Por demais, refiro-me a todos quantos lhe punham a vista em cima. A ' casa dos gatos', três lindos exemplares que impactavam em notáveis desfiles ao parapeito da janela. Aparecia a Linda, fofinha, ouviam-se vozes de cobiça, depois o Luka e os seus olhos e pelo pincelados a caramelo e o carácter ao estilo 'animal social' captava o olhar dos transeuntes, engraçado, escutava a plateia abismada. Mas quando o portentoso Leonardo, aparecia ao parapeito, todas as vozes do lado exterior à janela expressavam absoluto fascínio, os comentários dividiam-se entre o encantamento e o hipnotismo, mas que gato, diziam arrastando a última sílaba ainda de olhos postos na classe invulgar do que não era apenas um gato, mas um gatoooooo.
Passaram quinze anos e ainda hoje o Leonardo continua a espalhar reacções revelando a magificiencia deste lindo animal, um dos mais dignos e fieis representantes da sua espécie. Mas, muita coisa mundou, Leo viu partir dois parceiros, Linda e Luka, para não falar o afastamento do único humano que faria dele um gato amoroso, adjectivo que raras vezes o caracterizava. Hoje, este felino, com quinze anos no lombo é considerado idoso, não sei quanto tempo lhe resta e sofro nessa incerteza. Mesmo com a postura altiva, a idade moldou parte da aspereza e agressividade que faziam dele um animal destinado a humanos muito especiais. Tal e qual como o humano que lhe deu o ombro, analiso em paralelo e percebo que alcançando uma respeitável idade, ambos, besta e homem, revelam-se afáveis, tolerantes e compreensivos.
Pela primeira vez nos seus quinze anos vejo-o sair de casa e onde antes o Leonardo se instalava, o profundo vazio. Na sua nova morada, junto à minha mãe, poderá finalmente apreciar os prazeres de uma terceira idade tranquila. A impaciência do Benjamin e a necessidade de conquistar a liderança à força, transforma a minha casa numa arena. E porque não sou gladiador, nem quero que estasvduas feras se dewgladiem até haver derramamento de sangue, o meu mais velho segue tranquilo para um lar quentinho, acolhedor onde se poderá refastelar aos pés da sua querida parceira e de barriguinha cheia sem ver o título de macho alfa em risco. Ele sabe, por mais anos que passem e mesmo quando já não estiver entre nós para esfregar o pelo macio nas nossas pernas, Leonardo será eternamente recordado, não como um felpudo de grandes olhos cinzento, mas somente o gatoooo. E basta.
O café amarga, mesmo uma bica bem tirada e sem borra no fundo, amarga-me E insisto nesta bebida, duas a três vezes ao dia porque preciso de alguma coisa que me force a sair de casa. Tenho máquina Nespresso, aliás o que é que não tenho? - Lembro uma deixa num filme que dizia 'o que oferecer à mulher que tem tudo? - e às vezes ( não tão poucas vezes assim), sou essa mulher. Escusam de afiar o dente, não sou de posses materiais, mas quando me afirmo como 'a mulher que tem tudo' é porque preciso de pouco para ser feliz. Um pouquinho mais de ambição, assumo, far-me-ia bem, mas nunca contrariei a minha natureza, e julgo-me incapaz de o fazer algum dia. É por isso que aquela água escura e cremosa logo pela manhã, bebo ainda com os estabelecimentos de portada a meia aste e sem os bolos devidamente compartimentados na montra. Desta forma despojada pauto o início de mais um dia feliz. E mesmo arrancando o rabo da cama a muito custo, carpindo pragas à humanidade, depois do café, é sabido, tudo se irá compôr.
Já o dia começou, o sol brilha no perfeito azul do céu e as montras dos cafés seduzem-me com bolas cheias de creme, nesse instante começo um caso inesperado com o abatanado. Sento-me numa esplanada na baixa de Lisboa, tomam-me por turista e levam-me um euro e meio, o preço de uma pinga d'água numa chávena. Rejubilo com os muitos idiomas que me circundam. Espanhóis, italianos ou alemães preparam-se para palmilhar as sete colinas e vestidos/calçados a preceito levantam-se em bando. Observo-os até serem apenas uns pontinhos indecifráveis que parecem perder-se no azul, mais que perfeito, do mais belo céu do mundo.
'...Pedi um carro emprestado a um vizinho, fui até New Jersey e identifiquei o corpo dela para a polícia. O choque de a ver assim: tão irremediavelmente inerte, tão longe, tão terrivelmente, terrivelmente morta. Quando me perguntaram se queria que o hospital a autopsiasse disse-lhes que não valia a pena. Havia apenas duas possibilidades. Ou o corpo dela, vencido por uma tremenda exaustão não aguentara mais, ou então Betty tomara comprimidos para se matar, e eu não queria saber a resposta, pois nenhuma delas teria contado a verdadeira história de Betty. A minha irmã morreu de coração destroçado. Algumas pessoas riem-se quando ouvem esta expressão 'morrer de coração destroçado' mas isso é porque não sabem coisa nenhuma acerca do mundo e da vida. As pessoas morrem de corações destroçados. Acontece todos os dias e continuará até ao fim dos tempos.'
Paul Auster 'Homem na Escuridão'
Gosto muito do Camilo Lourenço, é assertivo mas a doçura da voz aligeira um pouco o real estado das finanças do país. Às vezes nem oiço com a atenção que devia tudo o que diz, à partida conhecemos o sr. Lourenço como uma espécie de mensageiro da miséria franciscana dos cofres do estado. Mas regalo-me no calor da sua voz e embalo até algo me reter. Ontem dizia 'temos falta de mundo' e frequentemente acuso esse défice como um dos meus principais problemas. Lourenço não defende que se vire costas a Portugal mas conhecer outras realidades só nos faria crescer, individualmente e como um todo, para melhor levarmos este pedaço de mundo rumo ao progresso. Só em momentos de maior desespero me terá ocorrido a emigração como hipótese, mas se conheço mundo percebo que o meu chão é Portugal. É aqui o meu céu, às vezes um paraíso infernal, estou de olhos no mundo mas apenas de mochila às costas. O mundo merece conhecer-nos, e o nosso povo tem-se mostrado válido por esses quatro cantos. Os heróis que escolhem ficar neste canto atlântico nunca devem esquecer que não somos uma ilha. Olhar para o lado nem sempre é sinónimo de inveja, mass de atenção e só assim evoluímos (sem perder a identidade), buscando ávidos a arte do saber, ao sabor da pura observação. Secalhar por isso é que gosto do Camilo Lourenço, por mais que o desânimo se apodere de mim a maior parte dos dias, algures no meu âmago ainda reside fome de conhecimento.
É de fácil explicação o meu fascínio pelas feiras de velharias, onde se vendem peças com tantas histórias, de pessoas que já não se encontram entre nós. Para alguns, apenas o cheiro a mofo das feiras de antiguidades dite um certo mistério do mau ou mesmo a cadáveres que não tiveram tempo em vida, de cumprir as respectivas missões. Gosto de objectos que terão passado por demasiadas mãos e cujas histórias poderão ficar à minha própria imaginação. Na feira do LX Factory perguntei se não vendiam cartas, o indivíduo apresentou-me das que se usam ao jogo, se me conhecesse saberia que não havia maneira de me interessar por aquelas. Eu falava das outras, as escritas, contam segredos, manuscritas e abertas à moda antiga. O vendedor olhou-me com um certo repúdio, indignado pelo meu interesse pela vida alheia. Partilhou comigo um encontro inusitado com um par de cartas que estariam perdidas entre uma velha revista e cujo teor dramático fê-lo livrar-se delas como quem tapa os ouvidos quando é apanhado de surpresa no meio de um casal desavindo. Com um trejeito efiminado, fez um gesto com as mãos como quem diz, há coisas que não devemos desenterrar. Naquele instante, senti-me como aqueles jornalistas sem coração que adoram chafurdar na dor dos outros, pelo menos o vendedor assim me contagiou, condenando com o olhar reprovador o meu interesse por correspondência. O que ele não sabe, porque é um segredo muito meu, é através dos outros que me vou conhecendo melhor. Ignorar o mundo que nos rodeia tem apenas um caminho, uma auto-estrada rumo ao puro autismo. Quero lá saber se Maria deixou o esposo pelo amantíssimo fadista dos becos e vielas, mas interessa-me a génese da questão, o fulcro. Creio, ingénua que já não há amor como de antigamente, mas se conhecermos as verdadeiras motivações do Homem para o amor, percebemos que as coisas são hoje o que sempre foram e serão. Porque, se herdámos três cérebros, o que supostamente nos distingue dos bichos, não podemos ignorar que o primeiro cérebro é que nos comanda e sobre isso nada poderemos fazer. Por isso, passando pelo Zoo de Lisboa , observei durante uns minutos os nossos amigos símios. O macho, abeirou a fêmea sem meias cantigas, em alguns segundos copularam, e se o macho se afastou já pronto para outra, ela pendurada numa estrutura metálica, aguardava tranquíla o próximo atrevido. M. sempre me disse 'depois de lavado e enxuto, é tudo a mesma coisa', agora sei exactamente do que fala.