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É tempo da galocha. Há-as de todas as cores e feitios, desde as mais caras às mais baratas, é só escolher. A chuva pede que as calcemos, mas anseio pelos chinelos, pé que se enterra em areias quentes ou pelo menos ténis coloridos com fitinhas mimosas para calcorrear esta cidade maravilhosa, Lisboa. O Sol brinca às escondidas, diz que é tímido, antes dissimulado e manipulador. Lembra uma mulher, talvez todas as mulheres, por saberem com quantos paus se faz uma canoa só brilham quando bem entendem. A mulher tem o sol no arrebite dos lábios ou na íris mais ou menos dilatada, faz-se trovoada e sabe que a intempérie pode ser temperada ou tropical. O Sol deste Inverno veste-se com um enorme manto de tule, é um sol mariquinha pé de salsa, e por salsa e manto de tule até podia ser um Sol bailarino, em vez disso parece observar-nos das alturas, dos píncaros das nuvens e brincar com os nossos humores como um vizinho maldoso que se lança à janela numa das tiradas históricas da cultura popular portuguesa "cá vai água".
Pois bem, eu trago o Sol nos meus pés e mesmo que chovam gatos e cães os meus lecoq cor de rosa "cupcake" acompanham-me nesta demanda. Para os loucos do instagram partilham os vossos sapatinhos com a mc Capicua, já tem single novo "Sereia Louca" e basta que façam #sereialouca para que todos os pezinhos dessas ninfetas lusitanas atravessem rios, mares e oceanos.
Um livro, 5 euros, "Reciclagem de Jimmy", prometia ser hilariante. Carrego-o na mala como um fardo, segue para a mesinha de cabeceira e em cima dele há brincos, pulseiras ou anéis que vou plantando. Um esforço gigante apodera-se de mim, abro-o na última página que deitei os olhos, e inevitavelmente as minhas pálpebras começam a pesar. Meia dúzia de linhas e o livro volta a fechar-se com o marcador improvisado, o talão de Zara. Creio, é no fim de semana que vou dar cabo dele, "A reciclagem do Jimmy" vai encerrar o circulo que tem vindo a percorrer ao longe de páginas que aos meus olhos parecem, intermináveis.
Chegam os dias da estragação, durmo até ao meio dia, mimo o gato até mais não, vejo episódios atrasados do "How I Meet Your Mother", marco chá com amigas de sempre, mergulho nos meus lençóis polares quentes cor de rosa "bubble gum" e o pobre Jimmy ali ao lado, já tem uma caneca de café escarrapachada na capa, entre o título e o nome do autor, Andy Tilley. A ver, se não lhe fica um carimbo em formato de aureola porque o protagonista desta história macabra de santo tem pouco, embora não seja assim tão mau diabo. O tipo que não tem talento para nada e na tentativa de resolver todos os seus problemas, nem mesmo na morte consegue ser bem sucedido, ou suficientemente excitante para quem o lê. Bolas Jimmy, que treta de homem és tu?
É Sábado, a minha agenda já se compôs, mas eu vou fazer das tripas coração para que o processo de reciclagem do Jimmy tenha um desfecho capaz de nos fazer acreditar, se o pobre Jimmy consegue, nós também. Mas nota bem rapaz, eu só o farei porque o livro custou 5 euros e prometia ser hilariante. Entre a desiludão e a minha forretice, compreendo que a última ganha aos pontos. Se fiquei no cinema a ver "Dogville" do Von Trier à beira de um ataque de nervos ou o "Crash" do Cronenberg completamente enojada, apenas para justificar o dinheiro que dispensara na bilheteira. Se mesmo que no restaurante a comida saiba a sebo, lambo o prato até à última camada de gordura só porque lembro que o dinheiro não cresce numa árvore plantada cá em casa, mas sai-me do pelo.
Jimmy, o teu caso é, como se diz lá no teu país "a piece of cake", está certo o bolo é bolorento, mas 5 euros são 5 euros. Jimmy vai tudo ficar bem.
Os grandes prazeres são grátis, dizem. Até pode ser verdade, mas pensem bem, tudo tem o seu custo. Sabemos que nesta existência tão transitória os momentos reveladores são por excelência simples, mas isso não faz deles total e absolutamente livres de imposto. Viver só por si é uma imposição, ninguém nos deu a escolher sermos nascidos e tantas vezes mães sofrem pela consciência do acto, talvez egoísta, de botar no mundo o maior de todos os amores, o que nasce das entranhas. Os braços da mãe são quentes e frementes de amor incondicional mas os do mundo ardem de revolta. Ninguém sabe como tudo começou, mas intriga-nos como num só mundo se conserve tanto ódio.
Talvez se julgue a minha passagem por esta vida, superficial, inconsequente ou sem propósito, porque me recuso deixar a semente germinar e o meu ventre abrir-se em flor. Sem redenção possível, levo do mundo o melhor que ele tem para dar, mas eu nada darei em troca. A minha busca diária, porque os grandes prazeres não são grátis e nem a bondade é totalmente desinteressada, é encontrar pequenos prazeres a preço de saldo.
No Miratejo há uma mesa de matrecos antiga, jogadores em madeira com direito a nove bolas por 50 cêntimos. Sem transeuntes, sitio isolado algures no burgo, fica-se na treta clubística por menos de um euro. Ali estou no degredo, entre o prazer das gargalhadas e a culpa pela minha indiferença quando diante os olhos o mundo se quebra em mil pedaços. Eu só quero marcar o próximo golo e fazer valer aqueles 50 cêntimos o mais que puder.